Relatórios antigos

Nesta secção disponibilizamos para consulta transcrições de relatórios dos primeiros anos da casa. Não se conseguiu descobrir o primeiro relatório. Inicia por transcrição na integra do segundo relatório de 1883. No final deste relatório seguem-se transcrições de alguns excertos escolhidos pela sua pertinência e interesse do já referido segundo de 1883 e de outros relatórios igualmente antigos. Mantivemos a ortografia original. A negrito notas/ comentários que não fazem parte dos originais. Se estes documentos históricos já não se encontram na pose do albergue não deixam de ser de facto uma criação da casa. Foram pensados, escritos e produzidos pelos nossos colegas fundadores do albergue.

Relatório II 1882/ 1883

Cota- P.P. 77A / Biblioteca Nacional


                                                            II


Relator- Luiz Jardim

Lallemant Frères, Typ. Lisboa

Fornecedores da Casa de Bragança

6, Rua do Tesouro Velho, 6

Relatório do Conselho Administrativo

(Lido em Assembléa Geral de 12 de Fevereiro de 1883)

Summario do relatorio

Numero de pobres que pernoitaram no albergue, desde 13 de Novembro de 1881 até 31 do mês de de Dezembro de 1882

Validos

1º - Os operarios de fóra de Lisboa, que vieram à capital em procura de trabalho;

2º - Os convalescentes de um e outro sexo, que dando baixas no hospital, e sem abrigo,ficaram no albergue por espaço de algumas noites;

3º- Os que sahiam da cadeia, expiada a culpa;

4º- Os viajantes pobres e os peregrinos andantes;

5º- Os emigrantes e os vadios

Invalidos

Os velhos de um e outro sexo; os epilepticos; os doentes de fome e os inválidos de toda a casta

Providencias da direcção: - parte economica

Ludovicus nomine primus, feliciter regnans, prastantibus viris juvantibus, hoc pium opus effecit, pauperibusque dedit , anno MDCCCLXXXI, regni sui xx.

Senhores:- È a segunda vez que temos a honra de vir a esta assembléa. Viemos aqui em fevereiro, chamados pelo vivo interesse de nosso illustre e digno Presidente, sua Magestade, o Rei. Voltamos hoje aqui, para cumprir o grato dever, prescripto em a nossa lei social. Precisava-se n'este momento de uma voz eloquente, que vos contasse os serviços relevantes d'esta associação, durante o anno findo; e também havia mister de que o relator d'este trabalho possuisse talento complexo, para desenhar, a côres sombrias, e verdadeiras a miseria que nos bateu à porta; - para descrever, com palavras, à altura do sentimento, os beneficios do capital, que subscreveste para allivio d'essa miseria, a que, em verdade, elle acudiu e minorou.

Portuguezes, hespanhoes, francezes, belgas, italianos, allemães, austriacos, suissos, hollandezes, hungaros, turcos, chinezes, todos foram recebidos pela nossa casa hospitaleira; - todos, sem indagar da sua procedencia, do seu passado, da sua religião ou fé politica. Só por que eram irmãos, nossos irmãos pobres, aqui os acolhemos. Assim o quizeste em vossa lei social, tal assim o cumprimos.

Os livros e pensadores fallam e escrevem da fraternidade dos povos. Nós praticamos essa fraternidade. Bem differente de outras associações, que teem vistas no ganho, no interesse, no lucro, ou no mutuo auxilio; a nossa olhou tão sómente à pratica do bem e do amor dos homens.

Foi obreira da civilisação, porque amparou os fracos, protegeu os dignos,e valeu às creanças, e a mães infelizes.

                                                      I

Desçamos a pormenores:

Do mapa nº1, que temos a honra de submeter ao esclarecido exame d'esta assembléa, vereis, Senhores, que no ultimo trimestre de 1881, e anno findo de 1882, acolheu a vossa casa hospitaleira do Largo do Intendente 1769 albergados, durante 7094 noites; abrangendo aquelle numero, além dos adultos, as mulheres e os menores.

As 68 profissões differentes dos adultos que se acolheram em o nosso albergue, na grande maioria extranhos à capital, suas diversas proveniencias- tudo evidencia que essa aflicta gente, de nós socorrida, era das classes trabalhadoras, que a Lisboa advieram, já das nossas provincias, já do extrangeiro. (NOTA - Os albergados de maioridade que, durante a nossa gerencia, se acolheram ao albergue, afluiram de 296 localidades portuguezas e 11 nações differentes. Uns (1117) vieram do extrangeiro e dos diversos districtos nacionais, quer insulares ou do continente; Outros (216) pertencem a Lisboa e circumvinhanças. (veja-se documento nº1)

Esta affluencia de forasteiros não a extranhamos. A liberdade do trabalho, consequencia da liberdade civil, mobilisou as forças da indústria moderna. Além do quê, a boa economia social demonstra que os productos acodem ao mercado, onde o preço é convidativo e retribuidor, e assim, que fogem os braços para os centros populosos e fabris, quando os chama a necessidade, e a procura é retribuidora do trabalho humano. Esta lei economica desloca muitos operarios, às vezes familias inteiras; não só no mesmo paiz, mas em povos limitrophes; e maximé n'aquelles, cuja indole, clima e costumes se aproximam e se parecem.

Á lei natural, que impelle os homens de todas as condições, por vezes, a mudarem o modo de viver, procurando, ainda que temporariamente, outros climas e usos differentes, - acresce a lei da civilisação moderna, a que os economicistas chamam- da offerta e da procura, e que esta leva às cidades industriaes muitos artificies pobres, e principalmente ao chegarem aos centros populosos, onde se encontram isolados, sem dinheiro, sem conhecidos e sem abrigo. Para todos estes é o albergue nocturno a instituição protectora e providencial, pois se lhes torna possível a vida na occasião da chegada, e nos primeiros dias, em que o forasteiro agenceia a collocação na fabrica, ou nas officinas, ou em que, por ter viajado a pé, recobrou, forças, para se dirigir a outra localidade.

Depois d'estas razões, que hoje em toda a Europa, tão grande importancia estão conferindo aos albergues nocturnos, adveem agora outras, as especiaes do nosso paiz: a crise vinicola e a crise economica. Uma parte notavel dos adventicios, foi, como elles proprios o declararam, e se vê do documento nº 1- a dos trabalhadores, denominação que entre nós quasi que vale dizer- jornaleiro agricola.

Ao chegarem a uma capital, visto que não teem profissão conhecida e frequentemente usada, não facil encontram arrumo.

Acha sem custo collocação o carpinteiro, o alafaite ou o pedreiro; Não assim o trabalhador, que tanto é o cavador de enxada, como o servente de alvenaria, que achega aos artifices o material para as contrucções urbanas.

D'esta arte, às condicções desfavoraveis, que acompanham sempre o advento de um forasteiro pobre a uma cidade grande, acrescem ainda as que n'um centro populoso são peculiares aos que se não entregam a trabalhos definidos, fabris ou manufactores. Motivos por que a direcção, muitas vezes, além do agasalho nocturno, e da ceia e almoço, dispensados a muitos, teve de intervir em favor de alguns de seus albergados, com mais sollicitude, procurando e obtendo-lhes emprego ou arrimo.

N'este empenho, mereceram-lhe principal cuidado os menores.

Nem a todos,porém, a direcção conseguiu dizer o esto vir da philosophia estoica, alcançando que fossem olhados com piedade pelos poderes constituidos. A forma pode mais que o fundo! O vosso conselho administrativo, todavia, não se queixou nem se queixa, por bem comprehender- que não pode dar-se sociedade sem leis. Ás vezes a lei é que pedia interpretação benigna em favor da sociedade.

Nada entibiou, comtudo, o cumprimento de nossos deveres.

Em 1 de Março do anno findo obtivemos empregar o albergado José de Barros, de Villa Nova de Ourem, em casa de um dos vogaes da direcção; e em 22 do referido mez alcançamos emprego para 9 outros, nas obras da camara municipal.

Em 25 do mez seguinte egualmente nos dispensou o municipio 9$000 reis mensaes para um pae de familia se encarregar de os menores, os quaes, ainda que nos termos do art. 284º do Codigo Civil, não poderem ser acolhidos no asylo municipal.

Em 26 de Maio deu o corpo gerente ao engeitado Guilherme Soares, menor de 18 annos, o preciso auxilio para tirar certidão de baptismo e assentar praça na armada: e em 10 de Junho conseguiu também que Henrique Julio Fernandes, outro menor de 15 annos, de Aldeia Gallega, assentasse praça no exercito.

Muitos, a que a direcção cuidou de arranjar emprego, teve primeiro de vestil-os; porquanto, rotos e em circumstancias de ultima pobreza, não podiam apparecer a publico, sem offensa do proprio pudor.

Em 16 de Junho de 1882, pernoitou no albergue um homem de semblante triste e repellente aspecto. Contava ter enviuvado havia 3 mezes, e que, para matar a fome a dois filhos, (um de 6 e outro de 8 annos) que o acompanhavam, se vira forçado a vender o casaco, que possuia. Dando-se-lhe algum fato indispensavel, soubemos no dia posterior que era a allegação do mendicante.

Em a noite de 19 do referido mez, deparou-se-nos um outro em peiores condiçõe; por isso que o fato, de podre, lhe cahia a pedaços. Confessou que em 6 semanas se não despira, o que bem attestava o nauseabundo expectaculo de repugnante miseria, em que vinha. Cortou-se-lhe o cabello, deu-se-lhe um banho, e vestiu-se todo de lavado.

Em a noite 22, ainda do alludido mez, entrou no albergue outro pobre que sobrelevava áquelles, pela quasi completa nudez. Disse que, se lhe não valesse o triste expediente de vender o fato, teria morrido à fome, pois lhe repugnava a mendicidade. Distribuiu-se-lhe roupa completa, e lhe obtivemos collocação.

Em a noite de ... Senhores: basta de ennumerações tristes.

Não iremos, porém, mais longe, sem referir outro acontecimento do qual o protagonista ainda hoje permanece no asylo nocturno.

Seriam 11 horas da noite de 25 do mez de Outubro, quando nos appareceu um menor de 14 annos de edade, na companhia de um homem a quem pedira agasalho. Ficou essa noite; e, apresentado no dia seguinte ao presidente d'esta direcção, contou que era de Melgaço, onde tinha mãe., e que desejava ir para um tio que vivia no Pará em boas circumstancias. Mandou logo o conselho admistrativo escrever para Melçaço, aproveitando as indicações do menor; e, emquanto não chegavam as informações pedidas, resolveu-se que o rapazinho continuasse amparado no albergue, sahindo tão sómente d'alli para a escola.

Chegada que foi a carta da mãe, dizendo de sua pobreza, conheceu este conselho que as affirmativas do menor eram verdadeiras; e não sem bom reparo, viu que a pobre mulher, dando optimos conselhos ao filho, mostrava ser de boa origem.

Convenceu-se, pois a direcção de que elle era digno de ser favorecido; e por isso rogou ao seu presidente que escrevesse para o Pará, perguntando ao tio do menor, se lá o queria. Aguardando a resposta, continúa o nosso protegido, a expensas de um bemfeitor, frequentando a escola, onde tem revelado inteligencia precoce e muita applicação.

                                                                  II

Senhores:- A nossa casa de beneficencia está situada entre quatro hospitaes: o de S. José, o de S. Lazaro, o Desterro, e o hospital Estephania. Os doentes, que d'alli sahem com alta, dos quaes a maior parte são de fóra da terra, veem recolher-se em nosso albergue, pois que não estão em circumstancias de trabalhar, já pela doença, que soffreram, já pela fraqueza, em que os pôz o tratamento da molestia.

Eis porque foram agasalhados no albergue (uma e mais noites) esses individuos nas condições referidas; o que a direcção deu por bem feito, ultrapassando d'este modo os preceitos regulamentares, em favor d'estes albergados. Do mappa nº 2 vereis os nomes dos convalescentes, de um e d'outro sexo, que se acolheramao nosso instituto de caridade.

É certo que desde a inaguração d'esta casa até ao fim do anno de 1882, ou quasi 15 mezes, aqui pernoitaram 169 convalescentes, durante 870 noites. D'estes albergados, os que nos mereceram mais dó e carinho, foram as mulheres partirientes, mães infelizes, que vinham de ter os filhos nos hospitaes, por não possuirem meios e commodos para a realisação do parto. Muitas vieram a este albergue, em estado, que facilmente se presume, pois traziam nos braços as creanças ainda de 13 dias! Ao entrarem, eram e são desde logo cuidadas pelas serventes da casa, as quaes lhes dispensam serviços e disvelos, que o seu melindroso estado reclama, e que a direcção tem ordenado.

Outras infelizes, ainda com seus filhos menores, aqui pernoitaram, abandonando suas casas por não terem com que pagar a renda. Valia-lhes, em sua desdita, a sympathia que inspiravam as creancinhas, com o seu sorriso pequenino, e ainda inscientes das contigencias do mundo; contingencias bem amargas, pois, porque os seus maridos não tinham n'essa occasião onde trabalhar, vinham elles e ellas pedir pousada no albergue: estas subiam para as camaratas das mulheres; aquelles ficavam nas dos homens.

Em circumstancias não menos tristes, nos bateram à porta, ainda outros, pedindo protecção e agasalho. Referimo-nos áquelles que nos cadernos de registo da entrada, à pergunta: - Onde residiu anteriormente, teem a seguinte resposta: - " No Limoeiro!" Omitimos os seus nomes: o moderno systema penal crê na rehabilitação dos criminosos; nós também.

Agora seguem os viajantes pobres, e os peregrinos andantes, no dizer da antiga linguagem portuguesa. Quasi todos os extrangeiros pertencem a esta cathegoria. Emigrados politicos, delinquentes refugiados, operarios, - são esses que, fazendo jornada por terra e a pé, demandam Lisboa, attrahidos pela situação topographica d'esta cidade. A sua viagem, se é penosa e cheia de obstaculos, mais difficil se lhes torna ainda a conservação aqui, maximé para os que véem do norte, pois que a extranheza da lingua, expondo-os à irrisão popular, obriga-os a irem mais longe. Então o nosso porto de mar, com seu movimento maritimo, descerá outra vez os largos horisontes da esperança aos mais desfallecidos, e partem. La está o novo mundo, que os espera!

Appareceram-nos alguns, como no tempo das devotas romagens.

Em 13 de fevereiro entrou no albergue às 6 horas e 5 minutos da noite, José Sastre Ramos, natural de Gallende, em Hespanha, de 31 annos de edade. Diz a nota do livro da entrada:

- "Veio a pé em trajos de peregrino."

N'esta mesma noite apresentou-se egualmente Feliz Allonzo, natural de Burgos, de 41 annos de edade. A nota da pagina seguinte repete egual reflexão: - "Veio a pé em trajos de peregrino."

Estes peregrinos, de que resam os cadernos, trajavam tunicas de briche, com sua esclavina salpicada de conchas; vinham descalços, ambos de cabeça descoberta, e encostando nodoso bordão, do qual pendia uma pequena bandeira com sua imagem. Acompanhavam-se de um homem rude, trazendo um alforge, que continha o que quer que fosse para uso dos dois. Diziam dirigir-se a Roma a cumprir uma penitencia.

Penitencia de miseria, a maior das penitencias, vinha cumprindo-a uma desgraçada gente tambem de Hespanha, que, em maio de 1882, dormiu no albergue durante 9 noites. O pae chamava-se Saturio Cabia; a mãe Carmen Romero Fernandes; e a filha Anna Cabia. Desejavam seguir para o Porto. Eram tão desditosos os trez infelizes, que a filha, rapariga de 14 annos, franzina, cheia de doçura e sensibilidade, ao vêr da jannella do albergue, passar na rua um sahimento funebre, exclamou:

"Antes eu queria ir como aquelle alli vae!"

Condoido o corpo gerente de tamanha desventura, soccorreu estes albergados em tudo que pode, e pagou-lhesa passagem para o seu destino.

Depois a torrente da emigração tambem arrojou uma das suas vagas até ao nosso hospicio de caridade, o qual, no revolto mar das desgraças humanas, foi visitado por mais esta. No registo dos albergados, encontram-se muitas declarações pelo seguinte theor:

"Vae engajado para o Brazil."

"Vae engajado para Moçambique."

"Emigrará, se não alcançar trabalho."

Estes dizeres dos cadernos revelam aqui, e claramente, que entre nós continua a emigração forçada, a peior, porque, além da miseria, que é a tyrannia, que a impõe, aggrava-se com o engajador, que é o algoz que prepara a victima. Esta secreção de desgraçados, que o corpo politico sua de si, diz Herculano- é anormal; e por isso algumas vezes os poderes publicos acordam.

Nos fins do mez de junho veio a Lisboa o vapor Ansa para receber colonos, com destino às ilhas Sandwich. Em 2 de Julho sahia a barra, tendo largado em terra uns 100 engajados, porque assim o ordenou o governador civil da ilha de Lisboa, sob denuncia das circumstancias horriveis, em que eram conduzidos aquelles infelizes. D'estes, 40 acolheram-se no albergue, em as noites de 2, 3 e 4 do mez de julho, por terem conhecimento de que a nossa casa hospitaleira havia recolhido uma pobre familia de emigrantes, pae, mãe e filhinho, que não embarcara n'aquelle vapor, sabendo dos máos tratos que a esperavam. A isto nada accrescentamos.

Dos vadios apenas diremos: aqui pernoitaram alguns, nomes conservamos de cór:- João Abril, Antonio d'Almeida, e pouco mais; se por ventura não são suppostos os nomes, que deram ao registo da entrada. O documento nº1 accusa, durante a nossa gerencia, 66 menores, sem profissão; este numero, porém, comprehende as 52 creanças, que vieram na companhia de suas mães. Assim, d'aquelles sómente 14 não tinham emprego conhecido, e nem todos eram portuguezes, pois que 3 eram hespanhoes, e 5 francezes. Os 10 restantes, que eram nacionaes, ao registo da entrada declararam- não conhecer nem pae nem mãe; e quando se lhes inquiriu onde haviam pernoitado anteriormente, esses responderam: - pelas ruas!

Esta declaração, causou-nos sempre muita tristeza. À semelhança do corpo humano, tem o organismo pollitico doenças, que só podem atalhar-se, quando se combatem na origem os seus germens primordiaes.

São as rugas da cidade!

                                                                  III

Quem percorrer os livretes do registo da entrada dos albergados, e assistir à sua comparencia no albergue, ouvindo-lhes referir casos da sua vida, cujo commentario verdadeiro melhor está escripto e contado pela propria miseria; - quem ler essa historia sentida e frequente de lagrimas, que os algarismos dos mappas mal podem traduzir, encontrará ainda outros actores, bem diversos dos já mencionados, pois que os primeiros constituiam um nucleo de gente válida, emquanto que estes só nos offerecem agora- a mendicante velhice, os epilepticos, os doentes de fome, e os inválidos de toda a casta.

Os velhos são em maior numero. Sem vigor para o trabalho e sem casa e familia, que lhes amparem os ultimos dias, quebrados pela miseria e pelos annos, são estes os que mais precisam utilisar-se da nossa casa hospitaleira; e pelo registo da entrada se vê que muitos aqui se recolheram no anno findo de 1882. Alguns recommendou a direcção, em officio, ao governador civil; mas nem sempre se logrou ver secundados os seus esforços.

Investigando as causas d'esta frequencia de miseria e senilidade ao albergue nocturno, talvez se encontrem na falta de educação previdente do nosso povo, que, em dias melhor aproveitados da juventude e da edade madura, não soube precaver o futuro, apartando economias, para acudir à enfermidade e à velhice.

É de louvar, como na França, Inglaterra, e principalmente na Hollanda, as classes laboriosas comprehenderam o valor das sociedades de soccorros mutuos. Em França existiam em 1880 6777, tendo 917471 socios. Na Inglaterra existem hoje trinta mil associações fraternas e de soccorros mutuos, com dez milhões de socios, dos quaes sete milhões pertencem às classes laboriosas, assim denominadas por se acharem mais pròximas da classe media.

A Hollanda, n'este ponto, excede a estes dois povos, porque tendo apenas 4 milhões de habitantes, conta actualmente nas suas associações de soccorros mutuos setecentos mil associados.

Em Portugal fallecem os documentos necessarios para esclarecer o assumpto, porquanto sómente possuimos o Annuario Estatistico de 1875.

Pelas informações d'este documento se vê existirem n'aquella data em nosso paiz 242 associações de soccorros mutuos; e terem sido creadas 11 caixas economicas, vindo a sua iniciativa, em parte, de alguns estabelecimentos bancarios. O que tudo é bem pouco para uma população de 4 milhões de habitantes; e por isso, faltando os institutos previdentes, e ao nosso povo o claro intendimento do proveito que d'elles poderia auferir, em um paiz, como o nosso, em que o parcellamento da terra permitte a qualquer a propriedade; n'estas circunstancias, repetimos, o crescer da miseria não nos espanta, e principalmente a dos valetudinarios, em que a pobreza é extrema, sem esperança e sem limites. Durante o anno de 1882 foi o nosso albergue um verdadeiro dynamometro de muitas lastimas.- Uns nos pediram agasallho, declarando soffrer de ataques epilepticos. O que era verdadeiro pois que, na propria camarata, muitos eram accommetidos, por vezes, pela molestia, a que o povo chama accidentes; sendo necessario submettel-os com os empregados da casa.

Como se vê pelos livretes do registo da entrada, referentes ao mez de novembro de 1881, e outros, todos os albergados n'estas circumstancias eram de Lisboa. Em rasão da sua doença, ninguem os quer em casa; de modo que teem de dormir pelas ruas. Em 23 de novembro de 1881, declarou Avelino Andre, engeitado, e conhecido vulgarmente pela alcunha de Exposto, que em a noite anterior dormira em Xabregas, encostado a uns cascos de vinho. Em 30 do mesmo mez José de Freitas Marques, soffrendo egualmente d'aquelles ataques, foi conduzido em maca para a esquadra de S. José, e sahindo d'alli, veio pedir abrigo ao albergue nocturno.

Outros, " por falta de alimento, vinham extenuados, a ponto de se conhecer claramente não poderem trabalhar. " Esta nota; lançada à margem dos cadernos, exceceu a nossa comiseração, ao ver à hora de muitos entrarem nos theatros, nos cafés iluminados, e n'outros logares, em procura de distracção e conforto, bastantes infelizes, a essa mesma hora, nos batiam à porta do albergue, fracos e sem forças, pedindo a nossa caridade. Eram os doentes de fome.

Além d'estes, accresciam os invàlidos: uns de molestia chronica, como cegos e aleijados; outros de doença repentina, a que acudimos. Em junho de 1882, ferida de uma syncope no albergue, Vicencia dos Santos, foi pelo perfeito logo auxiliada.

As suas circumstancias, porém, eram tão graves, que, se o dr. Ordaz lhe não applica para desde logo o tractamento conveniente e energico, a enferma teria perecido de um vôlvo. Passou a noite entre a vida e a morte; até que, de manhã, por conselho do medico, foi levada ao Hospital de S. José, com as precauções, que os seu estado exigia. Appareceu-nos vinte dias depois, mas d'esta vez só para agradecer a vida, que se lhe havia salvado. O dr. Ordaz que nos acompanhou sempre n'este combate contra a desgraça, merece aqui os maiores elogios, pela abnegação, com que tem prestado os seus valiosos serviços à nossa casa hospitaleira.

Aqui mencionamos egualmente o nome do sr. Antonio Pereira da Silva, nosso socio, que tendo uma pharmacia nas lojas do albergue, nos offereceu gratuitamente, em 13 de novembro de 1882, em commemoração do anniversario d'esta casa de caridade, os medicamentos, de que os pobres albergados houvessem necessidade. Citamos este facto, principalmente, para affirmar que este cidadão só interveio em nosso favor,quando, pela pratica constante de um anno, viu com seus proprios olhos, que o albergue nocturno ia prestando, de dia a dia, importantes soccorros às classes desvalidas. É o bem conquistando adeptos, defendores, vulgarisadores. Vires adquiril eundo. Alistou-se soldado da nossa bandeira, e, quando a viu combatendo pela desgraça, acudiu com as suas ambulancias.

Se aos benemeritos, de que fallámos, a nossa instituição de caridade mereceu favor e sympathia; à imprensa periodica do paiz não o deve menos. Por quanto tem sido incansavel em exaltar os serviços do albergue nocturno, trazendo à pubblicidade, não só os mappas do movimento dos albergados em nosso instituto hospitaleiro, mas também as informações as mais minuciosas sobre factos ali occorridos. No desempenho de tão nobre missão avantajaram-se o Comercio de Portugal e o Diario de Noticias; e o incitamento d'estes dois jornaes no animo publico tem concorrido poderosamente para o constante augmento de novos socios.

No anno de 1882, quanto de recrutas novos accorreram às nossas fileiras? Pelo documento nº3 verá esta illustrada assembléa que hoje contamos 521 associados, sendo 101 socios fundadores, 182 subscriptores, e 238 doadores.

N'esta cruzada do bem, encontrámos sempre o beneplacito e valioso concurso de muitas senhoras cujos nomes vão incluidos no documento nº 4. Não só auxiliaram directamente subscrevendo, mas até algumas, e sob o manto do anonymo, distribuiram ao nosso albergue donativos, roupas e fato para os albergados. A direcção sente não ter um distinctivo para galardoar estas bondosas senhoras, que, por vezes, nos soccorreram. Acode-nos agora à lembrança a ultima festa em Nice pela Associação dos Salvadores dos Alpes Maritimos.

N'aquelle imponente congresso, reunido em 14 de janeiro de 1882, duas benemeritas, - M.me Bardin e M.me Magdaleine Orengo, receberam em premio de seus serviços humanitarios, duas medalhas de 1ª classe. E os nossos socios bemfeitores?

É curto o espaço para fallarmos de todos; muitos nol-o prohibiram, offerecendo o donativo, e guardando o proprio nome.

Comtudo, não deixaremos olvidar o facto altamente symbolico de pura e sã caridade, de dois benemeritos anonymos, que, durante a nossa gerencia, concorreram com a despeza de almoços e ceias, distribuidos aos 1769 pobres, que em nosso albergue se acolheram durante 7094 noites.

                                                             IV

Já vêdes, senhores, que no anno de 1882, Lisboa manifestou ainda mais uma vez possuir um coração magnanimo, correndo a engrossar o cathalogo dos bemfeitores da nossa Sociedade, a que offereceu auxilio, dedicação e sympathias. (documentos nºs 3, 4 e 5)

E assim, vae medrando a olhos vista esta importante instituição em favor dos pobres. Importante institução em favor dos pobres. Importante, sem duvida, porque faz o beneficio, sem procurar a quem protege; e soccorrendo e agasalhando, desvia os miseraveis de commetterem delictos e crimes. O filho-familias, abandonando a casa paterna, por qualquer desvio ou insinuação de maus conselheiros, não tendo onde pernoite tranquilo e socegado, a que contingencias não está exposto, tendo dispendido o que possuia, e portanto sem recursos? Similhante ao filho prodigo, commeterá desatinos, e não será difficil vel-o depois nos calabouços da policia, com as vestes rasgadas, e o corpo contundido pelos máos tratos da orgia. - O marido abandonando o leito conjugal, por causa de uma d'aquellas scenas tristes, que não poucas vezes se representam no lar do operario, a quantos infortunios não expõe elle a mãe e os filhos, indo, sem meios, pernoitar na taberna e na vadiagem?- -O jornaleiro que roubaram, e que não tem com que pague o aluguer de uma pousada decente, o que fará, vendo-se em abandono extremo, sem ter um pedaço de tecto, onde abrigar a cabeça? Caindo em desespero, amaldiçorá a sociedade, accudando-a de ingrata; e no meio de conjecturas tristes, revoltando-se contra o proprio céo e terra, tomará o caminho da deshonra, e eil-o, em pouco, entre as espadas da policia, caminhando para a prisão; d'alli para o tribunal; e por ultimo para o degredo.

- E o convalescente, que sae do hospital? Quem lhe dará pousada, e se elle é desgraçado, e não tem com que pague?

- E o innocente, que sae do carcere, sem recursos e sem recursos e sem protecções?

- E o criminoso, que soltaram, expiada a culpa?

Confessemos senhores, que a sorte é caprichosa em seus designios, e que à sociedade lhe cumpre velar pelos infelizes, e guial-os pelo caminho da regeneração do homem. Cumpre evitar os crimes, e só se evitarão, protegendo os desgraçados, que a mór parte das vezes se convertem em criminosos, arrastados pela necessidade e pela miseria. Ao desvalido impelle-o a desventura ao crime, e este abysma-o a inutilidade!

                                                                  V

Senhor: - Todos estes casos Vossa Magestade anteviu, fundando a associação dos Albergues Nocturnos; e por isso o corpo gerente, compenetrando-se da alta missão, que o nosso instituto vinha desempenhar, e ainda das importantes funcções, em que esta illustrada assembléa nos investiu,- tratou sem demora de organisar as bases da sua administração, para cujo desempenho tem enviado trabalho e exforços.

Elaborou as Instrucções Provisorias, por que se tem dirigido o nosso hospicio de caridade, discutindo-as e approvando-as em novembro de 1881.

Em abril e maio do anno proximo findo de 1882, approvou esclarecido exame, visto que o art. 13º de nossos Estatutos assim o determina em seu 3º / actas de 26 de abril, 4, 10 e 25 de maio de 1882

Para que o albergue nocturno, patrimonio dos pobres, ficasse garantido contra o risco de incendio e outros, procedeu o corpo gerente da seguinte maneira:- segurou na companhia Bonança todos os seus moveis e mais pertenças/ acta de 3 de setembro de 1881/ e do primeiro magistrado do districto obteve uma estação de policia civil, a qual, alojada no proprio edificio do albergue, hoje se governa, em suas relações com esta casa, pelos preceitos regulamentares, que o digno commissario geral de boa mente, approvou para este fim. / acta de 27 de novembro de 1882

O concelho administrativo, sempre solicito em augmentar a receita, conseguiu realisar em favor da nossa casa de beneficencia dois beneficios,- o primeiro no real theatro de S. Carlos, o qual, captivo de despezas, produziu réis 991$400; o segundo no circo dos Recreios, em que o rendimento liquido foi de réis 980$775. O que tudo vereis pelo mappa nº 6.

A direcção estudou incessantemente a maneira de promover o augmento do fundo social; e pelos meios ao seu alcance, trabalhou sempre, para bem desempenhar os deveres do cargo, que lhe distribuistes; o que facilmente podereis conhecer, já pela acta d'este conselho administrativo, de 15 de dezembro de 1881, já pelos mappas, que vão juntos ao presente relatorio, sobre o movimento economico d'esta associacção, e que vamos resumir.

Deveria haver hoje em caixa 48 906$278 réis, quantia proveniente da receita, a contar de agosto de 1881 até 31de dezembro de 1882, como indica a Conta de Receitas e Despesas (documento nº 6); e como, porém, na retribuição dos empregados do albergue (documento nº9), despesas meudas, impressos, obras no edificio, e soccorros a differentes albergados, se dispendeu, no anno de 1882, em que a nossa casa se organisou definitivamente e colheu fama, 5 797$830 réis, foi aquella importancia reduzida a 43 118$248 réis, levando à conta de capital réis 2 302$987, representados em mobilia, roupa e utensilios do albergue. D'este modo, se o valor existente é de 43 118$248 réis o saldo effectivo do anno de 1882 em metal e inscripções, é de 40 805$461 réis (documento nº 7)

Este capital, que à excepção de 360$461 réis, está hoje convertido em fundos publicos, (documento nº8) (75 000$000 réis nominaes) rende annualmente 2 225$000 réis; d'este modo, sendo aproximadamente os nossos encargos effectivos do valor de 3 000$000 réis, parece à primeira vista que temos um deficit annual de réis 735$000; como, porém, as quotas de nossos socios subscriptores rendem 525$100 réis annualmente, (documento nº 3) vê-se que o deficit fica reduzido apenas a 209$900 réis. Quantia insignificante e que não deve empecer-vos; pois que, tendo-se fundado esta sociedade com o capital de réis 27 980$000 em 15 mezes subiram os seus haveres a 48 806$278 réis. E, se hoje estão reduzidos a 43 118$248 réis, é certo que as despezas de installação do primeiro albergue tornaram-no um estabelecimento modelo. Tudo isto, referente a um instituto de indole desconhecida, mas cujas obras se teem apresentado tão notaveis, deve influir as futuras direcções, fazendo-nos crêr que, em favor da civilisação, novos subscriptores e novos donativos hão de vir preencher a lacuna do defict actual. Além de que, tendo a benemerita commisão do Rio de Janeiro enviado a donativo importante de cerca de 11 0000$000 réis, o que foi altamente valioso para o nosso albergue,- é de esperar que as outras comissões obtenham egual favor pubblico, tudo a bem da prosperidade d'esta terra portugueza, que é nossa mãe commum de todos, e que tanto deve aos seus laboriosos e incansaveis filhos que, longe do berço, constituem todavia um dos elementos mais importantes da nossa vida social.

Lisboa. Sala das sessões da direcção, aos 23 de janeiro de 1883

Francisco Augusto Mendes Monteiro/ Polycarpo José Lopes dos Anjos/ José Pereira Soares/José da Costa Pedreira/ Visconde de Rio Vez/João Alfredo Dias/Dr. Luiz Jardim (relator)

Seguem-se detalhes da informação contida nos vários documentos deste 2º relatório do albergue.

Documento nº 1

Mappa Geral dos Albergados desde a Inauguração em 13 de Novembro de 1881 até 31 de Dezembro de 1882

(Mapas vários desdobráveis em 4 ou duas folhas)

Homens / Naturalidades 7 mapas (A, B, C, D, E, F, G) com todas as regiões de Portugal e lugares das ex.províncias ultramarinas (ex. Moçambique, Goa e Angola)

Estados (Solt. Casado. Viuvo) /

Edades (14 a 20/ 21 a 30/ 31 a 40/ 41 a 50/ 51 a 60/ 61 a 70/ 71 a 80/ 81 a 94)

Profissões (68 por ordem alfabética): Alfaiate, apontador, barbeiro, brochante, calafate, caldeireiro, canteiro, cardador, carpinteiro, carrejão, carroceiro, cauteleiro, cervejeiro, chapeleiro, cigarreiro, cocheiro, colcheiro, colador, cordoeiro, corrieiro, cozinheiro, criado, dourador, caixeiro, empreiteiro, encadernador, entalhador, escrevente, esculptor, esparteiro, estucador, estudante, fabricante de tecidos, fabricante de phosphoros, ferrador, ferrreiro, fogueiro, forneiro, fundidor, funileiro, impressor, jardineiro, jornaleiro, lithographo, machinista, marçano, marceneiro, maritimo, merceeiro, mineiro, oleiro, padeiro, pasteleiro, pedreiro, peixeiro, pescador, photographo, pintor, refinador, relojoeiro, sapateiro, serrador, serralheiro, tanoeiro, tecelão, tendeiro, trabalhador, vendedor, vidraceiro

Mappa H

Estrangeiros (Hespanha, França, Belgica, Italia, Allemanha, Austria, Suissa, Hollanda, Hungria, Turquia, China, Saxonia

Mulheres / Naturalidades 3 mapas (I, J, K) com todas as regiões de Portugal

Estados (Solt.Casado. Viuvo)

Edades (14 a 20/ 21 a 30/ 31 a 40/ 41 a 50/ 51 a 60/ 61 a 70/ 71 a 80/ 81 a 94)

Profissões (11 por ordem alfabética): Criadas, serviços de casa, costureiras, cozinheiras, engommadeiras, fructeiras, jornaleiras, lavadeiras, vendedoras, cordoeiras, doceiras

Ainda no mappa K

Estrangeiras (Hespanha, França, Italia, Inglaterra, Brazil, Austria)

Menores

Documento nº 2

A B C D

Convalescentes (homens) que pernoitaram no Albergue Nocturno de Lisboa até 31 de Dezembro de 1882

Anno/ Mez/ Nomes/ Edade/ Naturalidades/ Onde receberam tratamento (ex, Hospital de São José e de São Luis ou Caldas da Rainha, a fazer uso das aguas thermaes) / Nº de noites no albergue

D e E

Convalescentes (mulheres)

Documento nº 3 (9 folhas de socios)

Relação dos socios fundadores, doadores, e subscriptores da Associação dos Albergues Nocturnos de Lisboa, até 31 de Dezembro de 1882

Nomes e quantias

Em Lisboa

(inicia com os reis e segue)

Sua Magestade El-Rei o Senhor D. Luiz I----------------------------- 2:000$000

Sua Magestade a Rainha a Senhora D. Maria Pia -------------------- 500$000

Sua Magestade El-Rei o Senhor D. Fernando ------------------------- 600$000

Sua Alteza o Princepe Real D. Carlos----------------------------------- 300$000

Sua Alteza o Serenissimo Senhor Infante D. Augusto ----------------- 200$000

(...)

Documento nº 4

(Donativos feitos ao albergue em diferentes espécies desde a sua fundação até 31 de Dezembro de 1882)

Nomes dos doadores/ espécie dos donativos

Visconde de Feitosa/ Um retrato de S. M. EL-Rei, e outro de S.M. a rainha; 3 espelhos, 18 pentes e 12 escovas

(Seguem-se os diferentes donativos. Optámos por não transcrever nomes dos doadores, separando por uma barra cada lote de bens doados.)

6 esponjas/ 6 esteiras para as tinas, uma porção de sapatos e 10 camisas de panno cru/ 2 pares de calças de brim/ 1 peça de panno cru de 27m,50/ 30 litros de grão e 80kg d'arroz/ 2 leitos de ferro/ 12 camisas, 12 pares de calças, 12 coletes e 6 casacos. Tudo fato novo e para homem/ 1 berço de ferro com enxergão, colchão, almofadas e cobertores: 1 leito de ferro para creança com colchão, enxergão e travesseiro; 50 kilos d'arroz, 30 litros de grão e 120 litros de feijão branco/ 20 kilos de castanha pilada 12 camisas de panno cru/ 6 calças para homem e 12 camisas de panno cru/ 6 calças e 4 camisas de panno cru/ 6 calças e 4 casacos/ 50 livros (vide documento nº10)

Documento nº 5

Visita de differentes cidadãos ao primeiro Albergue Nocturno de Lisboa

(transcreveu-se 4 dos muitos testemunhos deste doc nº 5. O primeiro que inaugura este doc nº 5  dá conta da visita do rei ao albergue. Foi aqui que se descobriu que o albergue originalmente era no Largo do Intendente e não na Rua da Cruz dos Poiais)

13 de março de 1882

Em a noite de 13 de Março de 1882, S. M. El -Rei o Sr. D. Luiz I foi acompanhado do ministro do reino, visitou o albergue do largo do Intendente. O chefe do poder executivo, que a ninguem informara da sua visita, entrou no albergue às nove horas da noite, hora em que o inspector inscrevia no livro de entrada os nomes dos albergados. Ao continuo, que lhe abriu a porta, disse:

- Vá dizer ao prefeito que entraram duas pessoas, que lhe querem fallar. E foi seguindo para os dormitorios.

N'estes achava-se o rei conversando com alguns operarios já deitados, quando appareceu o prefeito, que dirigindo-se ao conversador nocturno, para elle desconhecido, perguntou:

- Deseja alguma coisa?

O rei respondeu-lhe com outra pergunta:

- Ha alguma novidade?

Extranhando a replica do visitante, que tinha o chapéo cahido sobre os olhos, o prefeito repetiu a pergunta:

- Ha alguma novidade!?

- Pode haver,acudiu o rei erguendo a cabeça.

N'este momento conheceu o empregado o fundador e presidente da Associação dos Albergues Nocturnos, e, surprehendido, começou a desculpar-se dizendo que ia prevenir os directores, que estavam no albergue.

- Não é necessario, disse o rei, vou ter com eles.

Depois de conversar com os vogaes da direcção, que estavam de serviço, visitou S. Magestade as tres grandes camaratas do estabelecimento; os quartos reservados; na cosinha provou a ceia dos pobres; esteve na rouparia e nas casas de banho; examinou attentamente a escripturação do estabelecimento; e folheando o livro dos visitantes, pediu a relação dos novos socios; finalmente voltando a conversar com os albergados, que ainda se achavam na casa de espera, saiu do asylo nocturno seriam onze e meia horas da noite.

24 dezembro de 1881

Visitamos este asylo e achámol-o na melhor ordem possível - Maria do Regaste e Gertrudes Baptista Anjos

fevereiro de 1882

Mil venturas e felicidades aos instituidores de tão util estabelecimento, minorando assim a sorte dos menos protegidos pela fortuna, louvando tambem o empregado que o dirige, pela boa ordem e asseio com que o mantem - Eduardo Augusto de Carvalho Boldim

4 de março de 1882

A caridade é uma fonte, que resalta dos mais profundos abysmos, e não se eleva nunca a maiores alturas, senão como quando desce do throno. Não admiramos tanto a caridade que sobe, como a caridade que desce. A caridade é bella quando praticada por qualquer individuo; e belissima quando praticada pelo Rei. A primeira enternece, a segunda entusiasma, e arrasta concorrentes.

É o campo unico onde o mais fraco pode rivalisar de igual a igual com o mais forte. Um exemplo historico: Certo Rei, assistindo a um esplendido festim da caridade particular, à inauguração de um hospicio para pobres, vasou do regio bolsinho uma avultada esmola. Um avaro, que o presenciou de olhos vesgos, e cujas delicias unicas até ali eram contar e recontar o seu ouro, e depois escondel-o no seio da terra, ficou tão abalado do exemplo do Rei que, com surpreza de todos, derramou no cofre dos pobres quantia mais avultada. O Rei, voltando-se para elle, disse-lhe: " Eis ahi como brilha mais em ti do que em mim o esplendor da realeza, não da realeza das purpuras, e dos galões, mas da realeza das realezas: a capacidade. Praza a Deus que continues a vencer-me nas batalhas d'esta realeza."

E d'aquelle dia em diante, o avaro, por um d'estes phenomenos de ordem moral inexplicaveis, tornou-se o mais singular modelo de liberalidade para com os pobres. Muito póde o exemplo do Rei! Veja-se agora a differença dos casos: alli era o Rei auxiliando simplesmente com o seu obolo uma obra pia de caridade collectiva de seus subditos; aqui é El-Rei de Portugal iniciando por inspiração propria a fundação de Albergues Nocturnos, onde o pobre nacional, ou estrangeiro, christão ou mouro, que à similhança de Christo, não tem onde repouzar a cabeça, como Christo em casa de Martha, agora encontra em Lisboa um aposento, onde passar commodamente uma noite, que, ao cahir das trevas, das chuvas e dos ventos, se lhe antolhava sem abrigo contra todos os desabrigos!

Feliz, e magnanimo tentame o de EL-Rei de Portugal,que em vez de fundições de peças de artilheria, de sabres e de granadeiras para destruir o genero humano, promove, e erige offcinas, onde se não caldeiam outras armas, senão as do amor para com os desvalidos; sob os influxos d'essa augusta beneficencia filha do ceo!

Que eloquentissima demonstração pratica d'aquelle axioma philosophico: Querer é poder!

- Aquelle pois que mais pode e menos faz, é porque não quer, ou não sabe querer, e quem não quer, podendo querer, é um egoista indigno das bençãos da Patria, e dos encomios da posteridade!

Ainda finalmente outra differença entre os dois casos allegados. Lá aquell'outro Rei só encontrou um rival em brios de caridade, cá encontra El -Rei de Portugal innumeros rivaes, e tão denodados, que porfiam entre si no ardimento de imital-o, tornando-se desde logo ministros executores da sua nobilissima empreza!

Abençoada competencia entre o Rei e os subditos" Oh! Muito póde o exemplo do Rei! Bem certo é aquelle outro axioma: Regis ad exemplum totus componitur orbis.

As gratissimas impressoes, que me produzio o bom asseio d'este novo estabelecimento de caridade, que tanto honra a Nação Portugueza na Pessoa do seu Rei por mais esta obra meritoria, arrancaram-me do peito estas desalinhavadas palavras, no momento em que, em companhia de alguns dos bons socios cooperadores da obra da caridade regia, visitei os Albergues Nocturnos. - Monsenhor Joaquim Pinto de Campos


excertos

Relatório II 1883

Portuguezes, hespanhoes, francezes, belgas, italianos, allemães, austriacos, suissos, hollandezes, hungaros, turcos, chinezes, todos foram recebidos pela nossa casa hospitaleira; - todos, sem indagar da sua procedencia, do seu passado, da sua religião ou fé politica. Só por que eram irmãos, nossos irmãos pobres, aqui os acolhemos. Assim o quizeste em vossa lei social, tal assim o cumprimos.

Os livros e pensadores fallam e escrevem da fraternidade dos povos. Nós praticamos essa fraternidade. Bem differente de outras associações, que teem vistas no ganho, no interesse, no lucro, ou no mutuo auxilio; a nossa olhou tão sómente à pratica do bem e do amor dos homens.

Foi obreira da civilisação, porque amparou os fracos, protegeu os dignos,e valeu às creanças, e a mães infelizes.

À semelhança do corpo humano, tem o organismo pollitico doenças, que só podem atalhar-se, quando se combatem na origem os seus germens primordiaes.

São as rugas da cidade!

Outros, " por falta de alimento, vinham extenuados, a ponto de se conhecer claramente não poderem trabalhar. " Esta nota; lançada à margem dos cadernos, exceceu a nossa comiseração, ao ver à hora de muitos entrarem nos theatros, nos cafés iluminados, e n'outros logares, em procura de distracção e conforto, bastantes infelizes, a essa mesma hora, nos batiam à porta do albergue, fracos e sem forças, pedindo a nossa caridade. Eram os doentes de fome.

Investigando as causas d'esta frequencia de miseria e senilidade ao albergue nocturno, talvez se encontrem na falta de educação previdente do nosso povo, que, em dias melhor aproveitados da juventude e da edade madura, não soube precaver o futuro, apartando economias, para acudir à enfermidade e à velhice.

Em circumstancias não menos tristes, nos bateram à porta, ainda outros, pedindo protecção e agasalho. Referimo-nos áquelles que nos cadernos de registo da entrada, à pergunta: - Onde residiu anteriormente, teem a seguinte resposta: - " No Limoeiro!" Omitimos os seus nomes: o moderno systema penal crê na rehabilitação dos criminosos; nós também.

Á lei natural, que impelle os homens de todas as condições, por vezes, a mudarem o modo de viver, procurando, ainda que temporariamente, outros climas e usos differentes, - acresce a lei da civilisação moderna, a que os ecomomicistas chamam- da offerta e da procura, e que esta leva às cidades industriaes muitos artificies pobres, e principalmente ao chegarem aos centros populosos, onde se encontram isolados, sem dinheiro, sem conhecidos e sem abrigo.

Relatório III de 1884/   Gabinete de Estudos Olisiponenses Cota - AE 76- CX CMLEO

Nota: O governo actual parece que deseja acudir a tão urgente necessidade publica. No Diario do Governo de 7 de janeiro de 1884, foi publicado um decreto pelo qual são creadas no paiz nove escholas industriaes; e isto com o intuito de que o trabalho e a industria " possam produzir em condições indispensaveis de barateza e perfeição, por meio do ensino dado aos trabalhadores nas escholas especiaes, com uma feição eminentemente pratica."

Agora virão dizer-nos:- em Lisboa há muitas creanças que trabalham. É certo: vendem cautelas, jornaes e bilhetes de theatro; são moços de coxeira, sotas dos americanos e Ripperts, e aviam recados pelas praças publicas; percorrem as ruas pela geada das manhãs; ouve-se-lhes o pregão infantil, quando já muitos dormem; outros empregam-se nas fabricas;- todos assim vão fazendo pela vida.

Mas senhores, de que modo vivem, o que aprendem, que eschola frequentaram? Em que regaço de mãe foram avigorar as forças para esta lucta pela existencia?

É então que a mulher leva o filho à officina; singelamente o diz no seu parecer o sr. dr Valle. Averiguou-se que o salario das creanças nas fabricas de Lisboa não exede 80 a 100 réis diarios. Pedem-lhes muito trabalho e dão-lhes tão pouca remuneração que nem para seu proprio sustento chegará. Assim, o pequeno operario trabalha muito, alimenta-se mal, vive numa atmosphera, onde só respira ar mephitico; tem de realisar innumeros sacrificios que lhe empobrecem a existencia physica, sem nenhum beneficio para a economia de suas familias; e - " n'esta nova maneira de matar creanças"- perdem a robustez e vem-lhes a morte; são roubados à instrucção, que nos verdes annos poderiam adquirir; perdem o futuro finalmente, sem, ao menos, adquirirem habilitações especiaes, porque desempenham serviços rudimentares só proprios da infancia e não preparatorios para trabalhos ulteriores, e nem grangeiam aptidões progressivas, que mais tarde aproveitem. Além do que, a fabrica é má eschola, e se algum rapaz, por ventura passou pela aula rudimentar antes de lá entrar, vae desaprender na fabrica o que na eschola aprendera.

E se a creança, por ardente desejo de saber, quizer frequentar uma aula nocturna, a que proveitoso estudo poderá ella dedicar-se,- ao cabo de dez horas de trabalho?

Agora, devemos nós proseguir ainda contando dos 35 egypcios, homenns, mulheres e creanças, que em janeiro e fevereiro do anno preterito foram acolher-se no albergue, onde permaneceram pelo espaço de 41 dias completos, sendo todos providos de alimentação e vestuario? Forasteiros esfaimados, emagrecidos, immundos e rotos, cuja desgraça foi tamanha, que fez pregão em toda a cidade, acudindo-lhes as pessoas caridosas, entre as quaes muitas senhoras?

Deveremos nós referir de como muitos d'elles, fugidos do exercito de Araby, atravessando o Mediteraneo, vieram a um dos portos da peninsula, e depois a pé a Lisboa, com o intento de esperar a monção favoravel de se fazerem de vela para o Brazil?

- em que os albergues dos pobres são palacios, onde circula um bom ar e muita luz e onde os soccorros não faltam aos mais necessitados!

Relatório VI 1887/ Torre do Tombo em Lisboa/ Cota - SV 4306 ( 2 - 3 )

E, todavia, pisaram aquelles pavimentos muitos pés descalços e chagados; extenderam-se sobre aquelles leitos muitos corpos gemebundos, quebrantados pelos annos, pela miseria e pelos rudes mesteres; mulheres descançaram alfim de suas desgraças e maus tratos domesticos em camas confortaveis, na serenidade de um amplo quarto, caiado; vendo seus filhos pequeninos dormindo em berços de ferro, suspensos; ou chegados ao coração, a seu lado, repousando a cabeça em pequenos travesseiros.

É certo, senhores, que depois da sua fundação nasceram já três casas beneficentes pelo modelo da nossa; e servindo-lhes de regra a lei da razão, justiça e verdade humana, aqui elaborada e por todos acceita. D'esses três albergues nocturnos, estando o de Ponta-Delgada já inaugurado, o de Evora e o de Turim acham-se em construcção.

Ao termo d'este relatorio encontrareis o officio do nosso consul em Paris, pedindo os estatutos e regulamentos d'esta sociedade, para esclarecerem o sr. Paul Meil sobre a casa hospitaleira, que deseja erguer na capital do Piemonte.

Agora. Senhores, compare-se o acolhimento da nossa associação a estes pobres à caridade, que em identicas circumstancias lhes dispensaria o Workhouse de Londres. Deposito vasto de mendigos, recebe o Workhouse os velhos, os enfermos, as mulheres e creanças abandonadas; mas, porque é mantido à custa da parochia, tão sómente acolhe os habitantes d'ella, ou os individuos, que lá nasceram.

Desde o começo de nossa gerencia, em todos os relatorios, para aqui invocámos a vossa attenção; e maximé para a miseria das mulheres e das creanças.

Tal assumpto está hoje no animo de todos os philantropos. Chegou a seria comprehensão de que é mais urgente e mais util remontar o grande rio da existencia humana, indo cuidar, na sua origem, pela fonte da vida, do que vir descendo pelas suas margens, a erguer comportas, e a represar as aguas para fazer pacifico e remansado o percurso da caudal humanidade.

E é tal o ardor do nosso tempo n'esta empreza, que, parallelo aos philantropos, vieram alistar-se os sabios hygienistas, e até os governos das nações. Antes proteger a maternidade, ainda mesmo illegitima, do que vêr a mulher servindo os empregos publicos,- dizem em recentes brochuras, os mais illustres clinicos. Um d'elles, medico eminente da Inglaterra, o Dr. Benjamin Vard Richadson, escreve, a este respeito, no Longman's Magasine um artigo de elevado criterio. Demonstra que as mulheres são tão competentes como os homens para os empregos publicos, e que a sua inferioridade muscular e cerebral, há vinte annos affirmada pelos anatomistas,- não existe; que são habeis para o trabalho intellectual, como teem provado, estudando a medicina, a physica e as matematicas, com a mesma aptidão por que d'antes estudavam a litteratura; mas que não podem exercer taes occupações , salvo, estancando-se-lhes a fonte da vida:- a maternidade. Proficiente na defeza de sua these, adduz argumentos physiologicos, de sobra confirmados, há de haver um anno, pelo Dr. Thulié, que foi presidente da Sociedade de Antropologia da França.

Qualquer pratica oral, estando os pobres no dormitorio para o descanço nocturno, como se pratica hoje nos albergues de Paris, é de pouco momento. Esses esforços perdem-se no labutar da vida quotidiana. A população d'esta noite não é a que apparece na noite seguinte.

Anda por ahi uma população fluctuante de menores, que passam seus annos, desde os 10 aos 22, entre a casa da correcção e a cadeia; começam de desobediencia a seus paes, acabam pelo crime. Isto o fomos averiguar nos registos da policia; e de tal affirmação guardamos as provas. Um dos jornaes mais lidos na capital dizia em seu numero de 20 do corrente:- " Foram hontem presos o Bispo, o Esqueleto, o Padre, o Quirino, o Sachristão, o Piriquito, o Marreca e o Cauteleiro; oito gatunos de 12 a 18 annos, precoces na idade, mas já experimentados nos feitos da mais refinada malandrice. Formavam entre si uma quadrilha, que se espalhava na cidade, furtando tudo a que podiam deitar a mão. Todos estiveram já cumprindo seis mezes de detenção nas Monicas, accusados de similhantes gentilezas.

Assim, todos se alistam n'esta causa do bem. A que levamos a nossa presença, sem que nos demova, ou a popularidade, ou a ostentação, senão antes o convencimento arreigado, de que o capital dos pobres lhes deve reverter todo em beneficios:- e não só em beneficios immediatos, que lhes acuddam às primeiras necessidades, mas n'aquelles que se convertem em valores para toda a vida: taes os de uma boa educação. Chegou o momento de remodelar o nosso albergue nocturno com um caracter mais pratico e mais consoante às exigencias da cidade e aosprincipios bem entendidos da beneficencia. É já tempo a descermos de vagas declamações e relatorios cheios de promessas, e erguer na vida real, o palacio habitavel para todos esses desejos e compuncções de animo, que valem como lagrimas, porém, mais de certo como melhoramentos.

Relatório VIII-1891/ Biblioteca Nacional / Cota - PP. 77 A

capitulo 3

E sabeis, senhores, como esta emigração se lava a effeito? Do seguinte modo: em Lisboa há os chamados engajadores, que recrutam os menores a seus paes, mediante o alimento, vestuario e uma libra annualmente a cada um,- como nos teem informado algumas creanças. Estas veem para a rua vender jornaes por conta do amo, e entregam-lhe os lucros auferidos. D'est'arte, se uma creança vende 100 jornaes por dia, dando cada jornal approximadamente 4 réis de lucro, segue-se que o menor entregou ao seu senhor: - 400 réis diarios, ou 12$000 réis cada mez, ou 144$000 por anno!

O engajador póde ter ao seu serviço umas 10 creanças; e, se acceitarmos aquelle calculo, ganha elle annualmente, explorando familias pobres, 1.446$000 réis que, pelo menos 45$000 réis, é egual a 1.395$000 réis, porque os 45$000 réis são a somma dos ordenados às 10 creanças a libra cada uma. Acceitemos que elle dispende por anno, com alimentação e vestuario, que bem se póde suppôr como será, 395$000 réis; ainda fica para o engajador um conto de réis!!!

As familias d'aquellas creanças,- pobres, ignorantes e miseraveis, - o que ambicionam é que seus filhos ganhem mais cedo melhor! Não pensam nas tristes consequencias que lhes acarretam, cedendo-os, quasi que vendidos, aos exploradores

Onde se fala do modelo inspirador do albergue noutras nações

Senhores:-Esta sociedade beneficente, que inaugurámos a 13 de novembro de 1881, concorrendo ahi innumeros cidadãos, hoje, por sua economia, tal fama grangeou em Portugal e na Europa, que a pouco trecho se fundaram no paiz mais tres albergues nocturnos, filhos da iniciativa particular; e de outras nações vieram os philanthropos a pedir informes para organisar casas de semelhança à nossa.

O relatorio de 1887 já d'estes successos informou a assembléa, trazendo-lhe o nome do cavalleiro Paulo Meille, de Turim, a quem enviámos nossos estatutos, annuarios e regulamentos. E, porque saiba este congresso até onde elles serviram de lição, aqui lhe apresentamos o primeiro relatorio do Asylo Nocturno de Turim- Humberto I, no qual se vê imitado o nosso exemplo, e a maneira por que havemos agasalhado e protegido os forasteiros pobres.

O valor da renda no Palacio Manique e a escola no albergue Rua da Cruz dos Poiais

As circumstancias economicas do albergue, florescentes, como esta assembléa terá de vêr, não concederam, todavia, que puzessemos logo em execução aquella vontade d'el-rei. Ainda que tivessemos já adquirido um predio com o produto de donativos e rendimentos proprios, é certo que não deviamos alienar inscripções, embora com a auctorização d'esta assembléa, no valor de 14 contos, porque, a procedermos assim, vinha a faltar-nos a receita, pois, só pela renda da casa da casa no Largo do Intendente, dispendiamos por anno um conto e trezentos mil réis.

Conclusão, portanto, que a feitura do albergue-escola só a podiamos realisar com vantagem economica, transferidos que fossem nossos pobres para o edificio da Rua da Cruz, e applicando-se então o capital correspondente da dita renda ao melhoramento já citado.

Relatório X / 1895/ Biblioteca Nacional/ Cota - S.C. 7669//21V

Descrição de obras já no edifício da Rua da Cruz dos Poiais

Para manter o asseio e boa hygiene do Albergue, realisámos em 1894 importantes melhoramentos. Completámos a nossa casa hospitaleira com uma nova edificação de dois andares. No inferior, destinámos o primeiro compartimento para sala de espera dos albergados do sexo masculino. E este, por intermedio de um pequeno e largo corredor, o communicámos com outra sala, onde está o grande tanque, que serve não sómente para banhos geraes, mas para escaldar as roupas do Albergue e dos albergados. Parallela a esta larga piscina, corre uma banheira estreita, ao rez-do-chão, destinada à lavagem dos pés. Logo depois fica a estufa para seccar o vestuario dos pobres, que em noites invernosas acodem encharcados pela chuva. Esta casa, construida conformemente aos preceitos da melhor hygiene, tem cabides em volta das paredes; ao centro outros ainda suspensos a varões de ferro. No solo vê-se o dorso de uma grande caldeira, d'onde o vapor da agua é expellido por um tubo de cobre em direcção ao banho geral, que é aquentado, ainda que tenha dois metros d'agua, em cinco minutos. O calor da fornalha encontra respiração em uma grande tubagem de ferro, circumdando a superficie do solo da estufa, e melhor póde ser o examinada quando se ergue a grega, tambem de ferro que a reveste exteriormente. A temperatura, que à estufa communica esta tubagem, é por vezes tão intensa, que as roupas dos pobres alli expostas, quando elles se deitam, em pouco estão seccas; e não raro é necessario, para que ella diminua, acudir ao registo de segurança. O pavimento superior o destinámos a sala de espera dos albergados do sexo feminino, e dois dormitorios de mulheres e creanças.

Relatório XI de 1897 / Khronos Bazaar ( alfarrabista de Lisboa em Campolide)

E por aqui se verá explicada a despeza feita durante a nossa já longa gerencia, e a que fizemos no biennio findo. Se com esta acudimos aos naufragos da terra firme, não nos mereceram menos attenção e cuidado os naufragos, que nos arrojou o mar. Agasalhámos os pescadores que sossobraram nas alturas de Peniche, e nos vieram a salvo pelo vapor norueguez Patria; os tripulantes do vapor Douro colhidos pelos temporaes nas costas da Inglaterra; os marinheiros do Catalina, navio hespanhol, que naufragou proximo da ilha da Madeira; e os do vapor Cliff, onde mareavam alguns portuguezes.

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O censo da população de Portugal no 1º de Dezembro de 1890 mostra à evidencia o deploravel atrazo em que se encontra a nossa instrucção primaria. Naquelle excellente trabalho da Repartição de Estatistica Geral se vê que, em 1890, existiam no continente e ilhas adjacentes 5.439.363 habitantes, e que d'elles, 4.310.919 não sabiam ler!

A percentagem dos analphabetos é portanto, de 79,2, isto é, em cada grupo de 100 portuguezes, 79 não sabiam ler! Se compararmos o atrazo do nosso ensino elementar com a instrucção do povo da Suecia, na Dinamarca e na Allemanha, onde é raro encontrar um menor que, depois dos 10 annos, não saiba ler e escrever,vê-se que é de profundo desanimo o estado em que nos encontramos. Aquelles dados estatisticos são expressivos, e maxime, sabendo-se que o districto de Lisboa, onde é a capital do reino, dá uma das maiores percentagens para aquella ignorancia:- 394.338 analphabetos em 611.168 habitantes, ou 64 por cento!

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Aqui termina nosso relatorio. Sabemos que tudo isto não abrange, por completo, os actos da vida humana; que há de haver sempre uma porta aberta para os dominio do ideal, para aquelle horto verdecido, onde se criam as perfumadas flores do sentimento. Certas almas nunca se julgarão purificadas de sua vida terrestre, sem o cunmprimento de uma outra missão, qual a das obras de beneficencia. Com suas lagrimas, protecção e compaixão, irão ungir as tristes miserias d'este mundo, que são principaes neste seculo, e consolá-las. Se das arvores frondosas cahem fructos, que, se não forem erguidos do humus, lá irão apodrecendo e incorporando na decomposição da nossa mãe commum, a terra; assim tambem da frondosa arvore da vida cahem e se abalam os fructos, cuja perda vale a pena salvar da decomposição, para affirmação da fraternidade humana. Certamente nada se perde neste mundo, nem na vida das cousas. A morte é uma ressurreição; mas a natureza, que cria a força, tambem se doe, se ella se perde sem deixar rasto de utilidade, pois as sociedades constituidas só existem pela combinação de todas as forças. Pelo que, onde não chegar a intelligencia e a razão, que chegue a fé; e essa, segundo o apostolo Christo, move as montanhas.